Quem frequenta meu blog sabe que de vez em quando eu posto alguns textos que não tem nada de publicidade. Material que recebo por e-mail (esse recebi de um amigo do trabalho) e simplesmente acho legal abrir esse espaço pra expor. Afinal, é sempre bom dar uma mudada né?
O texto de hoje é do Arnaldo Jabour e fala da ditadura do prazer que vivemos hoje.
Amigos me perguntam: “Você fez ‘A suprema felicidade’, mas o que é o prazer para você?” Penso, penso e respondo: “Sei lá...”
Mas, como insistem, vamos tentar.
O prazer pode nos dar culpa, e a culpa pode dar prazer. Os masoquistas sabem disso: todo prazer será castigado. Por isso, muitos preferem o doce sentimento de culpa, porque, se somos castigados antes, podemos ruminar sem medo o nosso vazio. O prazer deixa muito a desejar, o prazer nos deixa insatisfeitos porque acaba logo. O problema do prazer é que ele sempre demanda mais prazer, orgias mais perversas, drogas mais alucinantes. O prazer não quer ter fim. “Ah...e a felicidade?”, me perguntam. (Se bobear, viro conselheiro sentimental...) Bem, a felicidade seria um prazer mais duradouro, comedido. Mas a felicidade está fora de moda em tempos tão velozes. A felicidade é analógica, e o prazer, digital. A felicidade ficou chata, tem de ser administrada, dosada, e é feita também de dores, sofrimentos e dúvidas. O prazer, não; pega, mata e come. Todos fingem ter prazer – é mais comercial. As caras das revistas ostentam uma gargalhada eterna. Prazer é voraz; quer botar o mundo para dentro, sugar, comer o mundo como um pudim, pela boca, por todos os buracos. Prazer é cool. Felicidade é careta.
Mas vamos nos deter no capítulo do orgasmo, este retumbante final de sinfonias. O problema do orgasmo é a memória e a esperança. É bem fácil lembrar de um grande gozo no passado (mesmo ilusório) ou imaginar um grande uivo no futuro que ainda não chegou. Já o orgasmo no presente é assaltado por muitos estorvos: uma sirene de polícia, o medo de falhar, a campainha do vizinho.
Há os de vários tipos: o básico, o decepcionante e o apoteótico. De cindo estrelinhas a pontinho preto.
O apoteótico é raríssimo, é uma utopia que desqualifica os básicos tremores. Conheço um sujeito que na hora H pensou num gol de placa do Ronaldinho e quase subiu aos céus (apoteose). Um outro, que tinha ejaculação precoce, gozou ao apertar o botão do elevador da casa da mulher que tanto ambicionava. Fora isso, temos o básico, o arroz com feijão: “Pronto, meu bem, agora vamos jantar.”
“Mas você só pensa em sexo”, dirão vocês. É...fazer o quê, se o sexo está tomando o lugar de todos os outros desejos? A verdade é que o prazer anda de cabeça baixa, deprimido, apesar do eufórico exibicionismo em revistas de celebridades. O prazer é obrigatório no mercado. O que nos falta, então? Falta o pecado. Todos podem tudo: “Sim, eu gosto de atacar nos mictórios das rodoviárias e me orgulho da minha tara!” – diz o perverso sorrindo na TV. A permissividade total esvai o tesão. O prazer precisa da proibição. Ela é onisciente e gira em todas as direções, é um caleidoscópio de mulheres ou de homens. Em meio a tanta liberdade, nunca fomos tão solitários. Tínhamos pecados e proibições perfumando os prazeres, mas hoje ficou tudo referido ao sexo, para substituir frustrações políticas e sociais. A masturbação existe até no grande amor romântico, onde os dois narcisismos se tocam, se beijam, se arranham, mas não se comunicam. O mercado e a tecnociência provocam mutações em nós. Não queremos amar, queremos consumir alguém. Queremos ter o ritmo das coisas e, na progressiva digitalização do sexo, os corpos tendem a ser o campo de provas da eficiência dos mecanismos de prazer. Queremos o prazer das máquinas. E cada vez mais somos isso. Somos movidos por seus desejos que nos contaminam, somos movidos pela secreta vontade de existirem, pois, assim como as bombas desejam explodir, os robôs também querem amar. E já somos suas cobaias inconscientes.
Mas aí, dirá o leitor mais reflexivo, mais estoico, menos espicurista, mais sábio e, talvez, mais velho: “Sim, mas e a contemplação calma da natureza, os lagos dourados, as flores e as crianças correndo, e s auroras, os céus estrelados? E a arte? Isso não é prazer?” Sim, sim, mas por trás dessa calma contemplação de auroras e belezas, florestas e oceanos, há um ensaio para o fim, há o preparo para o maior prazer de todos, há a saudade oculta de algo que está além da vida, ou antes dela. Entre flores e lagos dourados contemplamos nosso fim. É uma saudade não sabemos de quê...
É um prazer além do prazer (Freud), é o prazer da matéria. A matéria quer paz. Nós somos um transtorno para a matéria que quer voltar a seu silêncio. A vida e o prazer enchem o saco da matéria que é obrigada a nos suportar. A matéria olha nossos arroubos de vida e espera pacientemente que acabe a valentia par voltarmos ao prado, à grama, à terra, ao sossego da tumba. Mais além do princípio do prazer, está a invencível vontade de morrer. A matéria sonha com a paz. Somos sonhados pela matéria da qual somos apenas um tremor, um despautério, uma agitação banal. A matéria nos sonha com tanta perfeição que pensamos que temos espírito.
O prazer da matéria é paciente. Nós não sabemos ainda, mas nosso grande prazer será sentido quando não estivermos presentes.
ARNALDO JABOR
O texto de hoje é do Arnaldo Jabour e fala da ditadura do prazer que vivemos hoje.
Amigos me perguntam: “Você fez ‘A suprema felicidade’, mas o que é o prazer para você?” Penso, penso e respondo: “Sei lá...”
Mas, como insistem, vamos tentar.
O prazer pode nos dar culpa, e a culpa pode dar prazer. Os masoquistas sabem disso: todo prazer será castigado. Por isso, muitos preferem o doce sentimento de culpa, porque, se somos castigados antes, podemos ruminar sem medo o nosso vazio. O prazer deixa muito a desejar, o prazer nos deixa insatisfeitos porque acaba logo. O problema do prazer é que ele sempre demanda mais prazer, orgias mais perversas, drogas mais alucinantes. O prazer não quer ter fim. “Ah...e a felicidade?”, me perguntam. (Se bobear, viro conselheiro sentimental...) Bem, a felicidade seria um prazer mais duradouro, comedido. Mas a felicidade está fora de moda em tempos tão velozes. A felicidade é analógica, e o prazer, digital. A felicidade ficou chata, tem de ser administrada, dosada, e é feita também de dores, sofrimentos e dúvidas. O prazer, não; pega, mata e come. Todos fingem ter prazer – é mais comercial. As caras das revistas ostentam uma gargalhada eterna. Prazer é voraz; quer botar o mundo para dentro, sugar, comer o mundo como um pudim, pela boca, por todos os buracos. Prazer é cool. Felicidade é careta.
Mas vamos nos deter no capítulo do orgasmo, este retumbante final de sinfonias. O problema do orgasmo é a memória e a esperança. É bem fácil lembrar de um grande gozo no passado (mesmo ilusório) ou imaginar um grande uivo no futuro que ainda não chegou. Já o orgasmo no presente é assaltado por muitos estorvos: uma sirene de polícia, o medo de falhar, a campainha do vizinho.
Há os de vários tipos: o básico, o decepcionante e o apoteótico. De cindo estrelinhas a pontinho preto.
O apoteótico é raríssimo, é uma utopia que desqualifica os básicos tremores. Conheço um sujeito que na hora H pensou num gol de placa do Ronaldinho e quase subiu aos céus (apoteose). Um outro, que tinha ejaculação precoce, gozou ao apertar o botão do elevador da casa da mulher que tanto ambicionava. Fora isso, temos o básico, o arroz com feijão: “Pronto, meu bem, agora vamos jantar.”
“Mas você só pensa em sexo”, dirão vocês. É...fazer o quê, se o sexo está tomando o lugar de todos os outros desejos? A verdade é que o prazer anda de cabeça baixa, deprimido, apesar do eufórico exibicionismo em revistas de celebridades. O prazer é obrigatório no mercado. O que nos falta, então? Falta o pecado. Todos podem tudo: “Sim, eu gosto de atacar nos mictórios das rodoviárias e me orgulho da minha tara!” – diz o perverso sorrindo na TV. A permissividade total esvai o tesão. O prazer precisa da proibição. Ela é onisciente e gira em todas as direções, é um caleidoscópio de mulheres ou de homens. Em meio a tanta liberdade, nunca fomos tão solitários. Tínhamos pecados e proibições perfumando os prazeres, mas hoje ficou tudo referido ao sexo, para substituir frustrações políticas e sociais. A masturbação existe até no grande amor romântico, onde os dois narcisismos se tocam, se beijam, se arranham, mas não se comunicam. O mercado e a tecnociência provocam mutações em nós. Não queremos amar, queremos consumir alguém. Queremos ter o ritmo das coisas e, na progressiva digitalização do sexo, os corpos tendem a ser o campo de provas da eficiência dos mecanismos de prazer. Queremos o prazer das máquinas. E cada vez mais somos isso. Somos movidos por seus desejos que nos contaminam, somos movidos pela secreta vontade de existirem, pois, assim como as bombas desejam explodir, os robôs também querem amar. E já somos suas cobaias inconscientes.
Mas aí, dirá o leitor mais reflexivo, mais estoico, menos espicurista, mais sábio e, talvez, mais velho: “Sim, mas e a contemplação calma da natureza, os lagos dourados, as flores e as crianças correndo, e s auroras, os céus estrelados? E a arte? Isso não é prazer?” Sim, sim, mas por trás dessa calma contemplação de auroras e belezas, florestas e oceanos, há um ensaio para o fim, há o preparo para o maior prazer de todos, há a saudade oculta de algo que está além da vida, ou antes dela. Entre flores e lagos dourados contemplamos nosso fim. É uma saudade não sabemos de quê...
É um prazer além do prazer (Freud), é o prazer da matéria. A matéria quer paz. Nós somos um transtorno para a matéria que quer voltar a seu silêncio. A vida e o prazer enchem o saco da matéria que é obrigada a nos suportar. A matéria olha nossos arroubos de vida e espera pacientemente que acabe a valentia par voltarmos ao prado, à grama, à terra, ao sossego da tumba. Mais além do princípio do prazer, está a invencível vontade de morrer. A matéria sonha com a paz. Somos sonhados pela matéria da qual somos apenas um tremor, um despautério, uma agitação banal. A matéria nos sonha com tanta perfeição que pensamos que temos espírito.
O prazer da matéria é paciente. Nós não sabemos ainda, mas nosso grande prazer será sentido quando não estivermos presentes.
ARNALDO JABOR
Um comentário:
Legal essa crônica, bem o estilo do Jabour.
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